A eloquência é o coração ficar sem voz: O silêncio de Emily Dickinson
Autora além do seu tempo, Emily Dickinson escreveu sobre temas profundos com extrema liberdade forma.
Silvia Andrade, no Homo Literatus
Na pequena cidade de Amherst, no estado de Massachusetts, vivia Emily Dickinson. Seu dia a dia era muito semelhante ao de outras mulheres do século XIX. Ela morava com os pais, os irmãos e cuidava da casa. Ao contrário, porém, da maioria das mulheres de seu tempo, Emily não casou, não constituiu família e se resignou em permanecer na residência dos pais e em cuidá-los. Após a morte deles, passou a viver sozinha. Mais do que solitária, ela era uma pessoa reclusa, tinha poucos amigos, raras vezes saía de casa e muito de sua comunicação com o mundo exterior era feita através de cartas.
Advinda de uma família burguesa e de boa orientação, desde cedo Dickinson foi leitora e também escritora – condição que não agradava muito ao seu pai, Edward, presbisteriano rígido e ultraconservador, que via na imagem feminina um ser “emoldurado” para as atividades do lar. Mesmo com a recusa paterna, tal vida “podada” e de “clausura” contribuiu bastante para a sua produção literária. Emily escreveu, aproximadamente, 1800 poemas e uma infinidade de cartas, tais escrituras só foram divulgadas depois de sua morte. Em vida, chegou a enviar alguns textos ao crítico Thomas Higginson, que os considerou impublicáveis. Diante da negativa do “analista”, a jovem julgou seus poemas incomunicáveis para o público leitor. Apesar disso, com o incentivo de poucos amigos, publicou cerca de 10 poemas em jornais locais.
Muitos dos poemas dickinsonianos são curtos, lembrando, às vezes, a estrutura dos haikais. A linguagem é concisa, truncada, por isso mesmo Emily é considerada “um dos grandes mestres da concisão verbal”. Há inúmeras peculiaridades na poética de Dickinson. A escritora tinha a liberdade de “brincar” com a linguagem. Desta forma, sua obra não apresenta uma pontuação padrão, suas rimas não são perfeitas, além de abusar das letras maiúsculas. Outra particularidade que chama a atenção em sua poesia é o uso excessivo da disjunção, geralmente confundida com o travessão, que serve para dar um ritmo diferenciado a alguns versos.
Os temas mais presentes de sua poética são a morte, o silêncio, a natureza, a religião, o conflito com Deus e o amor. O silêncio, que geralmente lembra ausência, torna-se assunto recorrente em sua obra. Emily, de maneira paradoxal, tinha necessidade de falar sobre a quietude, como se ela não pudesse ser guardada. Esse silêncio, em Dickinson, é a exigência de uma espera. Maurice Blanchot, em L’Écriture du Desastre, escreve:
“O silêncio não se guarda, ele não diz respeito à obra que pretendesse guardá-lo- ele é a exigência de uma espera que não tem nada a esperar, de uma linguagem que, supondo-se totalidade de discurso, gastar-se-ia em um golpe, desunir-se-ia, fragmentar-se-ia sem fim.” (página 51)
Através da imagem do silêncio, a poetisa escreve sobre a ocultação de palavras – ditas ou escritas – e o quanto essa apartação é uma manifestação de um sentimento maior. O signo do “silêncio” representa uma falta, um vazio e, por isso,segundo a autora, muitos têm medo do calar, sem saber o quanto o silenciar pode ser bonito e forte para se eternizar algo. Enfim, aceitar que essa mudez pode ser mais bela e intensa do que palavras que expressam. Nota-se que, contraditoriamente, a ausência dickinsoniana torna-se presença. Em alguns poemas sobre o silêncio, lê-se:
“É certa a Opinião geral/ Pensamos nós/ Que a Eloquência é o Coração/ Ficar sem Voz.” (página 85)
“O Silêncio amendronta/ Conforta-nos a Fala – / Mas o Silêncio é Infinitude./ Silêncio não tem cara.” (página 149)
“As palavras na boca dos felizes/ São músicas singelas/ Mas as sentidas em silêncio/ São belas-” (página 247)
O “silêncio tumular” leva a outro tema recorrente em sua poética: a morte, ou “o continente desconhecido”. Segundo José Lira em Emily Dickinson: A Críptica Beleza, a morte permeia quase toda a obra da escritora:
“A morte é sem dúvida, um dos motivos centrais de sua poesia,e para muitos é a força dominante, mas quase sempre está interrelacionada com outros temas: a fé e a dor, por exemplo, ou a vida e a natureza… A temática amorosa convencional está também explícita em algumas produções ao gosto ultra-romântico, por conta dos aspectos peculiares à fixação de sua obra. “
Em seus poemas, tal qual menciona José Lira, a morte surge, geralmente, com esta face dialética. O fim pode ser em vida, isto é, os pequenos lutos que vivencia-se no decorrer da existência: a perda de um amor, de um amigo, a falta de liberdade, pequenas perdas pessoais. Emily cogita a possibilidade da obstrução da morte pelo amor e pelo prazer. Em seus poemas, o desaparecimento físico pode ser fútil, diante da evidência da lembrança ou da vida eterna. Lê-se:
“Enfim chegou porém a Morte/Já ocupara a casa – /Dera-lhe a pálida mobília/ E a metálica paz – / Oh se fiel como a Frieza/ Tivesse o Amor chegado/ Para o Prazer obstruir a Porta/ E ninguém mais entrar.” (página 51)
“Quem morre, Amor, pouco lhe basta-/ Um Copo d’Água para a sede,/ Uma discreta Flor em frente/ Realçando a Parede,/ Talvez um Leque, um Amigo aflito,/ E a Convicção que alguém na vida/ Não verá cores no Arco-Íris/ Após tua Partida.” (página 289)
A filha introspectiva e solitária do advogado Edward Dickinson, nascida em 10 de dezembro de 1830, no fim da vida, passou por um prolongado período de doença, vindo a falecer de nefrite, no dia 15 de maio de 1886. Para a irmã Lavínia, fez o pedido derradeiro: que queimasse todos os seus poemas e cartas. Ao se deparar com o vasto material de Emily, Lavínia ficou comovida e, ao invés de atender ao seu pedido, lutou para publicar tão fascinante obra. Hoje, Dickinson é considerada uma das maiores poetisas de língua inglesa. A silenciosa Emily,de aparente vida e escrita provinciana, fez de seus versos lírica universal.
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