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Os seis conselhos de George Orwell para escrever melhor
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Edições do livro ‘1984’ na Feira do Livro de Hong Kong. Aaron Tam / AFP
Escritor os incluiu em ensaio publicado em 1946, em que criticava principalmente a linguagem política
Jaime Rubio Kancock, no El País
Normalmente se diz que não há regras para escrever bem. Mas não é verdade. Ajuda ter em mãos, por exemplo, as seis normas propostas por George Orwell. Seu filho, Richard Blair, as lembrou em uma entrevista feita por Bernardo Marín e publicada há alguns dias pelo EL PAÍS.
1. Nunca use uma metáfora, comparação ou outra frase feita que esteja acostumado a ver escrita.
2. Nunca use uma palavra longa se pode usar uma curta que signifique o mesmo.
3. Quando possível eliminar uma palavra, sempre elimine.
4. Nunca use a voz passiva quando puder usar a ativa.
5. Nunca use uma expressão estrangeira, una palavra científica ou um termo de jargão se puder pensar em uma palavra equivalente em seu idioma que seja de uso comum.
6. Descumpra qualquer uma dessas regras antes de escrever algo que pareça estúpido.
Orwell as incluiu em um ensaio intitulado Politics and the English Language (A Política e a Língua Inglesa), publicado em 1946 na revista Horizon. O artigo criticava principalmente a linguagem política, mas seus conselhos podem ser aplicados a qualquer texto. Por exemplo, o The Guardian o citou há alguns anos para criticar como escrevemos na internet. E também pode servir para qualquer idioma, apesar de o ponto 4, o que se refere à voz passiva, ser aplicado com mais frequência no inglês.
Para o autor britânico, essa preocupação com a linguagem não é nem “frívola” nem exclusiva dos escritores profissionais. Quando alguém se livra dos maus hábitos ao escrever, “pode pensar com mais clareza, e pensar com clareza é o primeiro passo para a regeneração da política”.
Tópicos imprecisos
Na opinião do autor britânico, são dois os problemas principais de muitos textos: as imagens banais e a falta de precisão. Quando escrevemos temos que deixar que “o significado escolha a palavra, e não ao contrário”, afirma. Tem que se fazer um esforço e pensar antes de começar a juntar letras, para evitar assim “as imagens desgastadas ou confusas, todas as frases pré-fabricadas, as repetições desnecessárias e os enganos e imprecisões”.
Nos textos que critica se acumulam “metáforas moribundas”, que foram tão usadas que perderam seu significado. Pensemos, por exemplo, em “enlouquece as redes sociais”. Outro vício habitual, segundo Orwell, é o de usar termos pretensiosos com a intenção de “dar um ar de imparcialidade científica a juízos tendenciosos”, além de “palavras que quase carecem de significado”.
Por exemplo, termos como democracia, socialismo e liberdade, que normalmente são usados com “significados diferentes que não se podem reconciliar entre si”. Não é o mesmo ler informação sobre notícias falsas em um texto do The New York Times e declarações de Donald Trump, que se apropriou dessa expressão, fake news, para classificar todas as manchetes de que não gosta.
Paradoxalmente, outra palavra que não significa o mesmo de acordo com quem a utiliza é “orwelliano”, usada por “críticos de todos os lados”, como publicou o The New York Times em um artigo que mencionava que esse texto, é, junto com 1984 e A Revolução dos Bichos, um dos mais influentes de Orwell.

George Orwell pensando em se seguir suas cinco primeiras normas ou apostar em a sexta Getty Images
Defender o indefensável
Como já apontamos, Orwell se preocupava principalmente em como eram mal escritos os textos políticos, algo que não podemos dizer que tenha mudado muito. Orwell cita exemplos que parecem muito atuais, como falar de “pacificação” quando “se bombardeia povoados indefesos pelo ar” ou de “transferência de população” quando “se despeja milhões de camponeses de suas terras”.
“Um orador que usa essa classe de fraseologia tomou distância de si mesmo e se transformou em uma máquina” que tenta “defender o indefensável”, escreveu Orwell. O que consegue é que “as mentiras pareçam verdadeiras, e o assassinato, respeitável”. Como recorda Steven Pinker em The Sense of Style, essa abstração tão vaga acaba desumanizando.
Quatro perguntas
É fato que escrever mal é fácil: não precisa se preocupar como nos expressamos, basta escolher expressões do catálogo de frases feitas. Mas também leva a que os textos sejam desagradáveis e ineficazes.
Por outro lado, um escritor cuidadoso se fará ao menos quatro perguntas antes de redigir qualquer texto:
– O que quero dizer?
– Quais palavras expressam isso?
– Qual imagem ou expressão deixa mais claro?
– Essa imagem é suficientemente nova para fazer efeito?
E talvez mais duas:
– Posso ser mais breve?
– Disse algo feio que é evitável?
Orwell e a pós-verdade
Os seis conselhos de Orwell para escrever bem são muito conhecidos, mas ultimamente se fala bem mais de outro texto de Orwell: o romance 1984, publicado em 1949, três anos depois de A Política e a Língua Inglesa. O clássico sempre foi popular (a primeira adaptação cinematográfica foi feita em 1956), mas nos últimos meses foi bastante citado em referência à pós-verdade e às notícias falsas. Um exemplo: esse fragmento que poderia explicar a diferença entre uma mentira e uma pós-verdade.
Aqui, a palavra-chave é preto-branco. Como tantas outras palavras da novilíngua, também esta tem dois sentidos antagônicos. Aplicada a um opositor, significa o hábito de afirmar sem pudor que o preto é branco, contrariando a evidência dos fatos. Aplicada a um membro do Partido, designa a lealdade diligente em afirmar que o preto é branco quando a disciplina do Partido assim exige. Mas significa também a capacidade de acreditar que o preto é branco, e mais ainda, de saber que o preto é branco, e esquecer que alguma vez se tenha pensado o contrário. Isso implica a constante alteração do passado, só possível pelo sistema de pensamento que na verdade abarca todo o resto, e que se designa na novilíngua pela palavra duplipensar.
Conheça cinco livros para perder o medo da matemática
0Rômulo Neves, no Metrópoles
No Brasil, parece que há uma resistência geral à matemática. A disciplina é vista como difícil e complicada. Mas não funciona assim no mundo todo. Aliás, nem mesmo no Brasil inteiro. Eu mesmo, quando criança, tinha uma obsessão por estatística. Fazia todas, em papel quadriculado, dos pontos do Campeonato Brasileiro e da Fórmula 1, quando Piquet e Senna ainda eram os melhores.
Pois bem, uma ótima forma de superar essa resistência é ler belas obras que tratam a matemática de maneira leve e, mais do que tudo, interessante. Não se trata de guias de estudo da disciplina, pelo contrário, são livros que contam histórias dessa linguagem tão interessante.
O primeiro é “Alex no País dos Números”, lançado no Reino Unido em 2010, indicado a vários prêmios naquele país. A brincadeira do título com “Alice no País das Maravilhas” faz referência ao nome do autor, Alex Bellos. Jornalista, formado em matemática e filosofia, Bellos conhece bem o Brasil. Foi correspondente do Guardian aqui, onde escreveu “Futebol: o Brasil em Campo”, além da autobiografia de Pelé. Como eu, Bellos é apaixonado por esporte e por números.
Bellos escreve primorosamente bem e vai apresentando alguns elementos matemáticos como se fossem personagens, cenários e fábulas. Alguns dos melhores momentos são as passagens sobre os diferentes sistemas de contagem, a história do Pi, do ábaco, uma espécie de calculadora ancestral, e os exemplos de como a disciplina integra a cultura de alguns países, como o Japão e a China.
Valem muito a pena, também, os textos sobre a aproximação das médias, a matemática e o crochê, as histórias sobre o Sudoku, aquele jogo de organizar os números num quadrado, de maneira que nenhuma linha ou coluna tenha números repetidos, a proporção áurea e o curioso sistema de contagem chinês que, com as partes do corpo, pode descrever qualquer número até 10 bilhões!
Em seguida, temos “As Grandes Equações – A História das Fórmulas Matemáticas mais Importantes e os Cientistas que as Criaram”, lançado em 2008 por Robert Crease, um historiador da ciência, que também publicou no Brasil “Os Dez mais Belos Experimentos Científicos”.
Como o próprio nome diz, o livro conta quando, por que e como surgiram as equações mais famosas da matemática, assim como um pouco da vida de seus formuladores e seus efeitos e usos ao longo da história. Brigas e conflitos entre teorias e cientistas também aparecem na obra.
Dê uma olhada nesse interessante livro se quiser conhecer um pouco da história do Teorema de Pitágoras, da da descoberta da Lei da Gravidade, da formulação da Equação de Schrödinger (a base da teoria quântica) ou da famosa equação de Einstein sobre a relação de Energia e Massa (E=MC2). Einstein, aliás, aparece em várias passagens.
Além do famoso “Alice no País das Maravilhas”, que trabalha sutilmente com vários temas da lógica matemática (Lewis Carrol era matemático de formação), há várias passagens do tema na literatura, mas fico com essa, de George Orwell, em 1984: “Liberdade é poder dizer que dois mais dois são quatro”.
E se estiver na pilha de ler outras obras sobre números e ciência, sugiro ainda: “Numerati”, do jornalista Stephen Baker, sobre os profissionais da ciência e da matemática que moldam o estilo de vida atual, por meio da programação de tudo o que conhecemos a partir do uso de dados em massa (big data); “25 Grandes Ideias – Como a Ciência Está Transformando Nosso Mundo”, de Robert Matthews, sobre pesquisas de ponta que podem revolucionar o modo como vivemos; e “Google – a biografia”, do ex-funcionário Steven Levy, que discute temas sensíveis do negócio da gigante da computação. Divirta-se!
Músicas inspiradas em livros para ouvir agora
0Canções inspiradas em grandes clássicos da literatura brasileira e internacional
Pâmela Carbonari, na Superinteressante
Para você que não dispensa uma boa playlist durante a leitura, este post é para você
Amor I love you, Marisa Monte – O Primo Basílio, Eça de Queiroz
O romance burguês sobre o relacionamento extraconjugal de Luísa com seu primo Basílio publicado pelo português Eça de Queiroz, em 1878, rendeu várias adaptações para o teatro, cinema e música. Uma das músicas mais chiclete do início dos anos 2000 foi inspirada na obra: “Amor I Love You”, de Marisa Monte. Quem diria!
Se você é uma das pessoas que, assim como eu, ouviu essa música 180 mil vezes quando foi lançada e nunca tinha percebido que era uma referência ao livro, preste atenção aos versos que Arnaldo Antunes cita a partir da segunda metade da canção – trata-se de um trecho de O Primo Basílio:
“E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!”
Don’t Stand So Close To Me, The Police – Lolita, Vladimir Nabokov
A história do professor universitário Humbert Humbert que fica loucamente atraído pela enteada Dolores, de 12 anos, é um dos livros mais controversos do século XX (que, a meu ver, é uma das obras mais pedófilas da literatura, que fique aqui registrado). A obra virou filme, dirigido por Stanley Kubrick, ópera, balé e foi adaptada para o teatro várias vezes. Não era de se espantar que a fascinação de H.H pela menina também virasse tema de música.
Em “Don’t Stand so Close To Me”, a banda britânica The Police faz menções diretas ao livro: “The accusations fly / It’s no use, he sees her/ He starts to shake/ And he starts to cough / Just like the old man in the / Famous book by Nabokov” ( As acusações voam / Não tem jeito, ele a vê / Ele começa / E ele começa a tossir / Assim como o velho / Famoso livro de Nabokov).
No início da canção há um trecho que diz: “This girl’s an open page/ Book marking – she’s so close now / This girl is half his age” (Esta menina é uma página aberta/ Marcação de livro – ela está tão perto agora/ Esta menina tem metade da idade dele). Apesar dessa também ser uma referência clara à Lolita, o narrador Humbert não tem o dobro da idade de Dolores. Nas primeiras páginas, ele diz que nasceu em Paris no ano de 1910. Se fizermos as contas com outras informações apresentadas ao longo da narrativa percebemos que ele tem 36 ou 37 anos. O que o faz três vezes mais velho que ela.
Admirável Gado Novo, Zé Ramalho – Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
Se existisse um prêmio para homenagear o livro que mais foi citado em músicas, provavelmente Admirável Mundo Novo seria chamado ao palco para receber esse troféu. A distopia de Huxley em que as pessoas são organizadas em castas para viverem em harmonia, tranquilas e dopadas com Soma, a droga da felicidade, já serviu de base para várias músicas.
Lançada na ditadura militar, em 1979, “Admirável Gado Novo”, de Zé Ramalho, é uma nítida referência à sociedade descrita por Huxley e, consequentemente, à nossa, que é de onde parte a crítica do escritor. Se pelo nome você não reconheceu, aqui vai uma dica: “Ê, ô, ô, vida de gado / Povo marcado, ê!/ Povo feliz!”. Reconheceu? Além do refrão icônico, o restante da letra é um grito necessário contra a alienação.
“Soma is what they would take when/ Hard times opened their eyes/ Saw pain in a new way / High stakes for a few names / Racing against sunbeams / Losing against their dreams” (Soma é o que eles tomariam quando / Tempos difíceis abrissem os seus olhos / Vissem a dor de um novo jeito / Riscos altos para poucos nomes / Correndo contra raios de sol / Perdendo contra seus sonhos), canta Julian Casablancas, vocalista do The Strokes, na música “Soma”. Como o próprio título entrega, a canção é uma alusão à droga que condiciona os cidadãos de um futuro a uma falsa sensação de bem-estar, desprovido de criatividade, revolta ou inquietude.
A banda Iron Maiden também usou o livro como referência para seu décimo disco, inclusive o nome “Brave World” é homônimo do título da distopia de Huxley. No Brasil, também temos uma forte representante dos influenciados pelo universal Admirável Mundo Novo, a baiana Pitty. Com a imperativa “Admirável Chip Novo”, ela critica a robotização dos homens reduzindo-as a meros fantoches consumistas.
Caçador de mim, Milton Nascimento – O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger
Os dilemas do jovem Holden Caulfield, grande ícone dos adolescentes incompreendidos, também entraria nesse páreo hipotético de obra mais adaptada para música.
“Nada a temer / Senão o correr da luta / Nada a fazer / Senão esquecer o medo / Abrir o peito à força / Numa procura / Fugir às armadilhas da mata escura”, canta Milton Nascimento no disco homônimo à música“Caçador de mim”.
Também há várias menções ao livro na canção“Catcher In The Rye”, no álbum Chinese Democracy da banda Guns N’ Roses. Além do título, o refrão é uma citação direta: “Ooh the Catcher in the Rye again/ Ooh won’t let you get away from his gun / It’s just another day like today” (Ooh o apanhador no campo de centeio novamente / Ooh não o deixará fugir de sua arma / É só mais um dia como hoje). De tantas menções aos questionamentos de Holden, esta é uma música que poderia ter saído da mente de J. D. Salinger facilmente.
Falando em Salinger, é por ele que a banda Green Day pergunta na música“Who Wrote Holden Caulfield?” “There’s a boy who fogs his world and now he’s getting lazy / There’s no motivation and frustration makes him crazy / He makes a plan to take a stand but always ends up sitting / Someone help him up or he’s gonna end up quitting” (Existe um garoto que obscurece o mundo dele e agora está ficando preguiçoso / Não há motivação e a frustração o deixa louco / Ele tenta encarar de frente mas acaba desistindo / Alguém o ajude ou ele vai acabar desistindo). Quem será, hein?
1984, David Bowie – 1984, George Orwell
O livro 1984 foi um dos grandes responsáveis por nos incutir a paranoia da falta de privacidade. Dada a força da narrativa, não é de se admirar que a obra seja habituè das listas de mais vendidos e tenha motivado tantas produções. Lembra do concurso imaginário de obra mais influente da música? Eis aqui outro grande candidato.
Em 1974, o livro de Orwell virou música de um titã tão grande quanto ele: David Bowie. A versão cantada no álbum Diamond Dogs é uma síntese da inquietação da utopia totalitária descrita em 1984.
Bowie não foi o único, o grupo britânico Muse compartilha de questionamentos semelhantes na música “Resistence”, que dá nome ao álbum. Nos versos “Is our secret safe tonight?/And are we out of sight?/Or will our world come tumbling down?/ Will they find our hiding place?/ Is this our last embrace? /Or will the walls start caving in?” (Será que nosso segredo está seguro esta noite? / Nós estamos fora de vista?/ Ou será que nosso mundo está desmoronando?/ Será que descobriram nosso esconderijo? /Será esse nosso último abraço? / Ou será que as paredes começam a desmoronar?), a banda remete ao personagem principal que, apesar de detestar o sistema, só começa a acreditar em uma possível rebelião ao ter um caso amoroso com Júlia, uma funcionária do governo tirânico. Os amantes mantêm o relacionamento escondido do Big Brother, o líder invasivo que espiona a população através de “teletelas”(televisões que funcionam como um espelho duplo) espalhadas em todos os lugares, públicos e privados.
Richard Blair: “A sociedade evoluiu para o que George Orwell viu”
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Richard Blair, filho de George Orwell, na estação da Atocha (Madri), no último domingo. Carlos Rosillo
Filho do escritor e presidente da Orwell Society reflete sobre o legado do seu pai
Bernardo Márin, no El País
Em fevereiro de 1937, um jovem britânico na faixa dos 30 anos, idealista e desajeitado, chegava às trincheiras da frente de Aragão para defender a República Espanhola. Chamava-se Eric Arthur Blair, embora a história o recorde como George Orwell. Neste mês, 80 anos depois do começo daquela aventura, o inglês Richard Blair, único filho do escritor, um engenheiro agrícola aposentado de 72 anos, viajou a Huesca (Espanha) para participar da inauguração de uma grande exposição sobre seu pai. Em uma conversa com o EL PAÍS durante sua rápida passagem por Madri no regresso a Londres, Blair evocou a figura de Orwell e comentou a atualidade do seu legado e a onda de interesse em torno do seu último romance, 1984, transformado em best-seller mundial desde a posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos.
“É verdade que nas últimas semanas, com as referências nos Estados Unidos aos ‘fatos alternativos’ [mencionados por Kellyanne Conway, uma das principais assessoras do presidente], aumentou muito o interesse por seu livro. Mas meu pai nunca deixou de estar na moda.” Originalmente, 1984 não era uma profecia, e sim uma fábula sobre os totalitarismos nazista e stalinista. Mas, como observa Blair, alguns detalhes que no romance pareciam ficção científica há bastante tempo foram incorporados ao nosso cotidiano – caso das câmeras de segurança que vigiam quase todos os nossos movimentos, ou o conhecimento que algumas empresas têm sobre nós apenas pela forma como navegamos na Internet ou pelo uso que fazemos do nosso cartão de crédito. “A sociedade evoluiu para o que ele viu. O mundo se encaminhou para Orwell”, afirma.

George Orwell e seu filho Richard, em 1946. Vernon Richards
Blair é o presidente da Orwell Society, organização sem fins lucrativos que se dedica a promover o debate de ideias e o conhecimento sobre a vida e obra do escritor, sob uma escrupulosa neutralidade em questões políticas. Talvez por isso, escolha muito bem suas palavras quando fala de Trump. “Acho que neste momento há muita tensão e compressão na Casa Branca. É verdade que Trump está atacando a imprensa, mas é um completo enigma, todos estão manobrando e aprendendo a conviver.” Naturalmente se alegra com o aumento das vendas dos livros de seu pai, inclusive porque é o herdeiro dos seus direitos autorais, (“que caducam em 2020”, comenta). Mas admite que é inquietante que esse efeito se deva aos paralelismos vistos pelo público entre a situação atual e a distopia que Orwell descreveu.
O escritor e sua mulher, Eileen, adotaram Richard em 1944. Dez meses depois, Eileen morreu durante uma cirurgia. Alguns amigos sugeriram ao escritor, tuberculoso, que devolvesse o menino, mas ele se recusou. A relação entre pai e filho se estreitou quando ambos se mudaram para a ilha de Jura, na Escócia. Um lugar mais saudável para conviver com a doença, e tão frio que, “se você se afastasse seis polegadas [15 centímetros] da chaminé, congelava”. Daqueles anos, Blair guarda a lembrança de um pai amoroso, que lhe fabricava brinquedos de madeira, com um peculiar senso de humor e nenhum dos escrúpulos da educação moderna. Certa vez, deixou o pequeno Richard, de três anos, dar uma tragada num cachimbo que ele havia enchido com o tabaco que juntava das bitucas do pai. O efeito, além de um tremendo ataque de vômito, foi que o menino ficou, temporariamente, vacinado contra o vício de fumar.
Foi em Jura que Orwell concluiu 1984. Durante o dia, escrevia em seu quarto e compartilhava os entardeceres com o menino. Uma de suas atividades favoritas era a pesca, em especial das lagostas que completavam uma dieta parca por causa do racionamento do pós-guerra. Na volta de um fim de semana de descanso no oeste da ilha, naufragaram e quase morreram afogados. Salvaram suas vidas, mas segundo Blair, o incidente agravou a saúde do seu pai. Seu amigo David Astor, dono do jornal The Observer, onde o escritor publicava, pediu permissão para importar dos EUA o antibiótico estreptomicina, então recém-descoberto. Mas Orwell desenvolveu alergia ao medicamento, e o esforço foi em vão. “As unhas lhe caíram, brotaram bolhas nos lábios”, recorda Richard. O escritor morreu em janeiro de 1950. Tinha 46 anos, e seu filho estava prestes a completar seis.
Qual é o ensinamento mais importante que Orwell nos deixou? Para os jornalistas, há vários, segundo Blair. “Seja honesto. O mais importante são os fatos que você puder provar, não a realidade que você gostaria que fosse. Hoje, os jornalistas não têm tempo de checar os fatos, e os erros se perpetuam e se multiplicam na Internet, até se transformarem numa verdade.” O filho do escritor recorda também suas seis regras para escrever com clareza: “Nunca use uma metáfora ou comparação que você costume ler [os clichês]; nunca use uma palavra longa se puder usar outra mais curta; se puder cortar uma palavra, corte; nunca use a voz passiva se puder usar a ativa; nunca use um termo estrangeiro, científico ou jargão se puder usar uma palavra de uso cotidiano; rompa qualquer uma destas regras se a alternativa for escrever alguma coisa francamente ruim”. E conclui com a definição de liberdade feita por seu pai: “Liberdade é poder dizer algo que os outros não querem ouvir”.
Blair se diz particularmente preocupado com a falta de diálogo na sociedade contemporânea. “As pessoas se dedicam a gritar umas com as outras, sem se escutarem.” E se surpreende ao ver que os jovens, em vez de falar cara a cara, passam o dia olhando seus celulares. “Até os casais nos restaurantes! Estarão se comunicando entre si por mensagens?”, brinca. E o que pensaria Orwell do século XXI, da Internet, dos grandes avanços científicos e da pós-verdade? “Ah, essa é a pergunta do milhão. Mas não é possível entrar na cabeça de ninguém. Nem responder a isso lendo seus livros. Se fosse vivo, teria 113 anos e teria tido muitas novas influências… é bobagem especular”. Portanto, nem ele sabe, nem há como saber. Mas se atreve a supor uma coisa: que, de qualquer forma, provavelmente faria reflexões cheias de bom senso.
Richard Blair visitou a Espanha para participar da inauguração de uma exposição, intitulada Orwell Toma Café em Huesca, que recorda a participação de seu pai na Guerra Civil espanhola. A mostra, organizada pelo Governo da região de Aragão, pela administração provincial de Huesca e pela prefeitura da cidade, foi inaugurada em 17 de fevereiro, coincidindo com o 80º. aniversário da chegada do escritor à frente de Aragão, e ficará aberta até 25 de junho.
O nome da exposição é uma alusão a uma frase que Orwell incluiu em Lutando na Espanha (Homage do Catalonia), seu livro de memórias sobre o conflito, supostamente dita pelo general que comandava as tropas republicanas depois da captura da localidade de Siétamo: “Amanhã tomaremos um café em Huesca”. Mas a cidade aragonesa não caiu, embora alguns jornais da zona leal à República tenham chegado a publicar essa notícia em suas primeiras páginas.
Orwell não tomou esse café, mas Richard na semana passada aproveitou a oportunidade, na companhia de um descendente de outro protagonista da sua aventura espanhola: Quentin Kopp, organizador de eventos da Orwell Society e filho do comandante Kopp, chefe do escritor nas milícias do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), próximas do trotskismo.
Lutando na Espanha é uma obra honesta, que não agrada totalmente a quem mantém uma visão maniqueísta da guerra. Orwell foi à Espanha para lutar contra o fascismo, mas, como aconteceu com os trotskistas e anarquistas, acabou sendo perseguido pelos comunistas de linha soviética. A Espanha ainda não compreendeu bem sua história recente, segundo Blair, e esse livro, o mais vendido sobre a Guerra Civil, contribui para reduzir “esse grande buraco negro que há entre 1936 e 1975”. “Ainda há pessoas que chegam até mim com lágrimas nos olhos e me dizem: obrigado pelo que o seu pai fez”.