Homenageado pelo Fliaraxá, Mia Couto busca inspiração na natureza

Mia Couto durante palestra em Araxá (foto: Franklin Caldeira/Divulgação)
Escritor moçambicano sempre conciliou biologia e literatura. Paixão pelos animais se reflete em suas histórias e nos tÃtulos dos livros
Ana Clara Brant, no UAI
Araxá â Imagine o que significa para um biólogo e amante da natureza ficar hospedado dentro de um parque, rodeado de árvores e várias espécies da fauna e da flora brasileira. âQuis sair para conhecer um pouco do hotel e desbravar a mata. Porém, percebi que se saÃsse, nunca mais voltaria de tanto que iria gostar (risos). O que seria uma grande vantagemâ, brinca o moçambicano Mia Couto, um dos nomes mais importantes da literatura africana.
O lugar a que ele se refere é o icônico Grande Hotel de Araxá, no Alto ParanaÃba, que desde quarta-feira recebe o Festival Literário de Araxá (Fliaraxá). Mia é o homenageado da sexta edição do evento, que será encerrado neste domingo. âNão sinto que sou o homenageado, mas sim a literatura. O importante não são os escritores, mas o que fazemos, a obra que deixamosâ, diz ele.
Nascido há 62 anos, Antônio EmÃlio Leite Couto demonstrava, já menino, paixão pelos bichos. O apelido Mia vem daÃ. âQuando tinha por volta de 2 ou 3 anos, queria ser chamado assim porque pensava que era um gato. Ou melhor, não posso dizer isso no Brasil, pois, certa vez, contei essa história e todo mundo riu. Depois, percebi que a palavra gato tinha outro sentido aquiâ, diverte-se.
Mia Couto sempre conciliou biologia e literatura. A paixão pelos animais se reflete em suas histórias e nos tÃtulos dos livros â O último voo do flamingo, O gato e o escuro e A confissão da leoa. No momento, ele está fascinado pelas corujas.
âDesde que escrevi o conto Os pássaros de Deus, que defende a ideia de que eles são mensageiros, os pássaros começaram a ficar mais presentes na minha vida. Garças e corujas caem na porta do meu sÃtio, não tenho outra alternativa senão adotá-las. Agora estou com quatro corujinhas. Aliás, os animais nos concedem um grande aprendizado: aprender a amar de maneira que a deixar o outro solto, livre. Não as prendo lá; ficam e voltam quando querem. Não sei se vão virar livro. Só sei que as corujas, agora, são personagens da minha vida. Não me liberto delas nunca maisâ, revela.
GAZA Atualmente, Mia se dedica a promover a trilogia As areias do imperador, ficção que aborda a derrocada do Império de Gaza, no Sul de Moçambique, tido como o palco da maior resistência da Ãfrica à colonização portuguesa. Ele acaba de lançar o último livro da saga, O bebedor de horizontes, em Moçambique e Portugal. Os outros dois são Mulheres de cinzas e A espada e a azagaia.
âAcredito que esse tenha sido o meu maior desafio na literatura. A trilogia exigiu muito de mim, porque é um romance histórico e essa não é a minha praia. Durante quatro anos, fiz um trabalho de investigação muito vasto. Foi a única vez que escrevi uma história ficcional que queria que tivesse relação de verossimilhança e proximidade com o fato histórico, com o personagem históricoâ, explica.
O bebedor de horizontes só chegará ao Brasil em 2018. Mia â que veio mais de 30 vezes ao paÃs â é o único africano integrante da Academia Brasileira de Letras. Sócio correspondente eleito em 1998, ele ocupa a cadeira número 5, cujo patrono é o português dom Francisco de Sousa.
*A repórter viajou a convite da organização do evento
Duas perguntas para…
MIA COUTO
ESCRITOR
O tema do Fliaraxá é âLÃngua, leitura e utopiaâ. O que você acha dessa trÃade?
Assim como toda trÃade, ela é falsa porque é uma coisa só. São facetas de uma única entidade. Eu diria que nós não fomos feitos para caber nisso que se chama realidade. Não fomos feitos para caber em nós próprios, numa só vida, numa só pessoa. Essa ideia da utopia não é uma ideia construÃda. Ela é inerente, faz parte da nossa essência. Para esta relação com uma coisa que não é imediata precisamos saber uma outra lÃngua, que é uma lÃngua muito eufórica: a linguagem da poesia. Para isso, precisamos ter histórias. Somos feitos por histórias. Então, tudo isso faz com que as três entidades que separamos formem uma coisa só.
à a primeira vez que seus livros â a trilogia As areias do imperador â serão traduzidos para o chinês. Qual é a sua expectativa?
Vai ser algo completamente diferente. Em agosto de 2018, vou à China pela primeira vez e estou muito curioso para saber sobre essa cultura, que, aparentemente, já teve uma relação com a Ãfrica, mas teve uma atitude de uma certa displicência. Há cerca de mil anos, os chineses navegaram pela costa africana, mas desistiram, porque acharam que não valia a pena, que não aprenderiam nada com a Ãfrica. Mil anos depois, acho que vai ser bem interessante a relação com uma outra Ãfrica.
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