Sem aulas e de graça: assim é a escola de programação mais revolucionária do mundo

William Beaucardet
50.000 candidatos se inscrevem todos os anos para entrar na 42, uma escola vanguardista de Paris que não exige nem o ensino médio e onde não existem professores
Jacobo Pedraza, no El PaÃs
Duas instituições acadêmicas convivem no Boulevard Bessières de Paris, no 17º distrito, limite entre a cidade e os subúrbios. Uma é o Liceu-Colégio Internacional Honoré de Balzac, o maior colégio público da capital francesa: cinco hectares consagrados ao criador de A Comédia Humana, cuja assinatura se vê estampada na grade de entrada do local. A outra se chama 42. Uma escola de programação que a partir do próprio nome já encarna uma mudança em relação à totalidade do sistema educacional francês ou, o que é a mesma coisa, ao conceito de formação que impera há pelo menos três séculos. Para começar, porque não exige nenhum tÃtulo acadêmico aos seus alunos. E porque é gratuita.
A 42 é uma fundação privada sem fins lucrativos, sustentada principalmente pelo magnata francês da tecnologia Xavier Niel, coproprietário do Le Monde (e dos direitos de My Way de Sinatra) e, além disso, incentivador do que será a maior incubadora do mundo, a também parisiense Station F. O modelo acadêmico foi concebido pelo próprio Niel e por Nicolas Sadirac, fundador e ex-diretor executivo da rede de escolas particulares de código Epitech, de excelente reputação no cenário tecnológico francês, mas com preços a partir dos 7.000 euros (25.800 reais) anuais. Ambos acreditam que a genialidade não surge somente entre os que podem pagar uma instituição desse tipo, e pensam que a universidade pública se asfixia por seu próprio tamanho e falha na hora de proporcionar o salto entre a formação e a empresa. Criaram uma escola que qualquer um ânascido para o códigoâ (o lema da escola) possa ter acesso, em permanente contato com o ambiente empresarial e um com um conceito pedagógico que faz da gamificação sua essência.
A escola surpreende já na entrada. A primeira coisa que o aluno escuta é a própria porta, que o cumprimenta pelo nome: âBonjour, Gillesâ. A recepção tem um móvel para guardar o patinete, o meio de transporte favorito de muitos. Mas o que fascinam são as primeiras amostras da enorme coleção de arte urbana que decora a escola, e que se mistura à perfeição com os alunos e com o espÃrito desse espaço: mais de 150 pinturas e esculturas subversivas, rebeldes, jovens. âTemos até mesmo um Banksyâ, confessa lá mesmo Catherine Madinier, ex-aluna dessa escola fundada em 2013 e membro do corpo docente, que por fim confirma a suspeita que todo bom freak já tinha sobre o nome da escola: âà pelo Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adamsâ. A 42 é â nessa série de rádio, romance e filme â a resposta absurda e confusa que dá um monumental supercomputador à âpergunta definitiva sobre a vida, o universo e tudoâ. Até a calculadora do Google conhece essa referência.
Sem aulas, sem professores
Madinier avança até a primeira colmeia de computadores, no térreo do edifÃcio. Uma sala gigante com mais de 300 desktops com a inconfundÃvel maçã da Apple: âOs macs consomem menos energia. Quando se usam mais de 1.000 por dia, a economia é considerávelâ, diz esta nativa de Nice, de 31 anos, que se define frequentemente como professora, embora saliente que seu papel é mais de tutora ou mediadora. âNão existem professores. Não há aulas. Não há lições ou livros de estudoâ. âIsso é uma grande diferença em relação a outras escolas como a Epitechâ, destaca David Giron, diretor de estudos da 42, que desempenhou a mesma função na própria Epitech, que acrescenta. âOs professores e as lições não têm sentido hoje em dia. Todo o material está na Internet, e queremos sejam capazes de procurá-lo, classificá-lo e filtrá-loâ.
Os mais de 2.000 alunos da escola deixam de lado o modelo de formação que conheceram em favor de uma educação a partir de uma perspectiva que, na realidade, conhecem muito melhor: a dos vÃdeogames.
NÃveis, tÃtulos e recompensas
Gilles Potte tem vinte anos e está muito distante da imagem normalmente associada ao estudante de engenharia da computação: cobre seu cabelo longo com uma boina, ostenta um piercing na orelha, uma tatuagem nas costas e usa calças corsário e camiseta. Ao seu redor há alunos que escrevem linhas de código em velocidade de cruzeiro, enquanto outros socializam entre vÃdeos do YouTube e algum fica absorto jogando uma partida. âPodem fazer mais coisas, gostamos que façam mais coisas, mas na maior parte do tempo devem estar programadoâ, diz Madinier.
Gilles inicia a sessão na intranet da 42. à como carregar uma partida salva de um videogame. No menu principal se pode observar que ele está no nÃvel 2, faltam poucos pontos de experiência para alcançar o 3. âNo total, são 21 nÃveis [não é um número ao acaso, é a metade de 42], a partir do 21º se considera que o aluno está capacitado para sair para o mundo do trabalhoâ, diz Catherine Madinier. Frequentemente, segundo ela, os alunos conseguem um emprego em tempo integral que os faz deixar a escola antes de completar os três anos, duração média do programa.
A gamificação é aplicada em todos os campos da 42. Gilles ganhou dois tÃtulos, algo como um tratamento oficial (senhor, doutor, excelentÃssimo) muito comum no mundo dos videogames, que são dados como recompensa ou punição de acordo com as ações realizadas pelo jogador. âTenho os tÃtulos de troll e o de altruÃstaâ, proclama o aluno, rindo. O primeiro é por fazer comentários demais e com ânsia de incomodar nos fóruns da escola. O segundo é por ser um grande corretor desinteressado dos exercÃcios dos colegas. Sim, na 42 os exercÃcios não são corrigidos pelos tutores, mas pelos próprios alunos: âà uma maneira de aprender com o trabalho dos outros, com suas formas, seus métodos para chegar a uma solução de um problema e com seus errosâ, explica Madinier. O erro também é recompensado: o tÃtulo de errão é assumido com orgulho porque implica em perseverança e desejo de superação de si mesmo.
O progresso nos estudos é observado no gráfico de exercÃcios, que lembra claramente os diagramas de habilidades aprendidas em videogames como Final Fantasy. O aluno começa no centro de vários cÃrculos concêntricos e seu avanço o leva para a parte externa, prova a prova, escolhendo um ou outro caminho em função da parcela de todo o mundo da informática que mais lhe interesse.
O percurso começa focado no desenvolvimento do ambiente Unix com linguagem de programação C, no final os alunos poderão usar praticamente qualquer linguagem fluentemente. As quatro matérias principais são Unix, algoritmos, gráficos e web. Aos poucos vãos e especializando: celular, cibersegurança, hardware, design, videogames. âNão chegam a completar todos os exercÃcios de todos os caminhos, isso é quase impossÃvel. Pense que existem trabalhos tão complexos como criar seu próprio sistema operacional ou o motor de um vÃdeo game online do zeroâ, revela Catherine Madinier. âEu ainda não decidi. Estou entre design, vÃdeo games, ou inteligência artificialâ, diz Gilles, fã de fotografia e edição gráfica.
O programa de estudos é elaborado e atualizado constantemente pela equipe docente, formada por cerca de 15 tutores dirigidos por David Giron. Há exercÃcios de todo tipo: elaborar periféricos para substituir o mouse do computador, dar forma a um videogame de tiros em primeira pessoa, criar um aplicativo de calendário que depois o próprio aluno utilizará ou pequenas ferramentas para o site da 42. Cada prática é avaliada pelos colegas e os resultados podem ser verificados e alterados a partir da intranet da escola.
Se um estudante é reprovado ou aprovado (mas não está satisfeito com seu desempenho) pode repetir o exercÃcio quantas vezes quiser. âA escola fica aberta todos os dias do ano, 24 horas por dia, de modo que os alunos chegam a passar mais de 90 horas por semana nelaâ, diz Giron. Ser aprovado com boas notas ou com especial esmero em alguns pontos dá direito a medalhas e recompensas, um sistema amplamente desenvolvido em qualquer vÃdeo game da plataforma online Steam.
âAs recompensas podem ser trocadas por produtos do refeitório ou, por exemplo, por banhos na Jacuzziâ, diz Madinier enquanto continua mostrando as instalações da 42. O refeitório e a varanda estão inusualmente cheios por causa do sol. à possÃvel perceber estéticas e padrões: geeks que poderiam muito bem ser membros de qualquer equipe profissional de esports, alguns com roupas escuras e estética mangá, e outros com calças jeans largas e tênis de skate. Todos coexistem, se misturam e desfrutam da música, desta vez um rap francês, o gênero favorito do banlieue (subúrbio).
A piscina
Ao lado do refeitório fica a piscina. Não há piscina ou água. à uma enorme sala onde podem ser vistas malas, pessoas deitadas, gente descansando em colchões infláveis e sacos de dormir. A piscina é o nome do espaço e da época que definem se um aluno tem ou não futuro na 42. Quase um mês de intensidade máxima que representa o único veÃculo para ser admitido na escola.
Chega-se à piscina depois de duas provas online, dois jogos que, além disso, não são os mesmos para todos. Um dura 10 minutos e é um exercÃcio de memória. O outro dura mais de duas horas e testa a capacidade lógica do candidato. Começam sendo simples, mas à medida que os nÃveis são concluÃdos tornam-se mais e mais complicados. Com eles é feita a seleção dos pretendentes que terão acesso à piscina: de cerca de 50.000, apenas 3.000 sobrevivem.
âPara a inscrição só pedimos nome, sobrenome e data de nascimento. Não queremos saber de mais nadaâ, afirma Madinier. âNem o que estudaram. Ou de onde vêm. Ou se são pobres ou ricosâ. Chegam à 42 muitos candidatos de classe baixa, dos subúrbios das cidades ou pessoas sem recursos de outros paÃses, que dificilmente poderiam entrar em qualquer outra escola de programação. Durante o mês de provas, nas quais os alunos passam uma média de 15 horas por dia trabalhando, são autorizados a se alojar nas instalações da escola (no recinto da piscina), usar os chuveiros e os vestiários e comer no refeitório, com preços muito menores que os de estabelecimentos próximos e ainda mais baratos quando comparados aos do centro de Paris.
As provas terminam a cada dia exatamente à s 23h42. Seu foco é o desenvolvimento de habilidades em linguagem C, um pilar básico para adaptar os conceitos e a mentalidade ao mundo da programação. âMuitos pré-inscritos chegam sem saber programar. Eu mesma vim do setor de negócios e não tinha a menor ideiaâ, revela Madinier. Gilles vem do mundo da restauração: âEu me matriculei num curso técnico de hotelaria perto daqui, no 18º distrito, mas esse futuro não me convenceu. Descobri que era isso que eu gostava, então eu decidi tentarâ, lembra o aluno parisiense, que também não sabia muito de código antes de entrar, apesar de reconhecer que se preparou antes da piscina.
Os exercÃcios da piscina são corrigidos entre os próprios alunos, que vão aprendendo com isso, e também por uma inteligência artificial conhecida como moedora. Nessa altura, são incentivados a trabalhar em conjunto e a ajudar uns aos outros âalgo que em outros lugares significa fazer trapaça e que nós pensamos que é essencialâ, argumenta David Giron. No fim da primeira semana de cada processo seletivo mais de uma centena de candidatos (entre 800 e 1.000 para cada uma das três piscinas anuais, que são realizadas no verão) terá desistido. âà um processo muito difÃcil e a maneira de encará-lo também é importante para nós. As notas são uma indicação, mas no final os selecionados são escolhidos pelo corpo docente para além dos seus resultados. O critério varia e o número de admitidos, tambémâ, afirma Madinier. A 42 não costuma aceitar alunos menores de 18 anos ou maiores de 30: não quer que deixem o ensino médio para entrar em um processo muito difÃcil de aprendizagem porque perderiam muitas oportunidades de futuro, e tampouco acreditam que aqueles que já passaram dos trinta possam absorver a quantidade de conceitos que precisam assimilar. A intenção também é ter um corpo discente coeso.

Uma das colmeias de computadores da escola. William Beaucardet
A escola estima que 40% dos alunos não têm o ensino médio completo. Uma porcentagem um pouco menor vem de meios desfavorecidos. Cerca de 20% vêm de fora da França. Poderia ser um ambiente complicado, mas é completamente o oposto. âEu estou aqui faz pouco tempo, mas desde o inÃcio você percebe que este é o seu lugar. Na piscina todos ajudamos uns aos outros e agora continua sendo assim. Não importa de onde você vem. Somos todos amigosâ, diz Gilles.
Como diretor de estudos, David Giron viveu histórias que destacam as oportunidades que a escola deu para muitos alunos: âPoderia mencionar um ex-pequeno traficante de drogas que veio para cá depois de escapar por pouco da cadeia e hoje dirige sua própria empresa e contrata nossos alunos. Ou um montador da ópera que não via sentido na vida e hoje é feliz como desenvolvedor de aplicativos para celular. Ou até mesmo um doutor em filosofia italiano que agora é diretor de tecnologia de uma grande empresaâ. âA melhor coisa de trabalhar aqui é ver florescer alguns. Sua mudança dentro da 42 ao encontrar um lugar e colegas com os que se sentem realmente bem e envolvidos. Muitos encontram aqui pela primeira vez uma motivação, um modo de vida e uma oportunidade única â diz sorrindo Catherine Madinier, que cumprimenta muitos alunos com dois beijos.
Trabalho
Os que foram aprovados também podem comer no refeitório e até mesmo trabalhar nele. Também podem ser remunerados com dinheiro para uso interno por fazer visitas guiadas para os turistas. Podem descansar, mas ao contrário dos candidatos, não estão autorizados a dormir nas instalações: em troca, a escola oferece alojamentos baratos e os apoia para obter empréstimos.
No primeiro andar da 42 fica a segunda colmeia de computadores, conhecida como Terra Média. Outros 300 computadores, onde o ambiente de trabalho é mais profissional. âTemos um fórum onde colocamos ofertas de emprego que chegam a nósâ, diz Madinier. Estágios, contratos por tarefa, por tempo indeterminado ou até para cargos de diretor e tecnologia em algumas das startups do poderoso ecossistema parisiense. O centro é muito bem relacionado graças ao apoio de Xavier Niel e ao prestÃgio que adquiriu desde sua criação. à comum que os alunos colaborem com escolas de design e de negócios, muitas vezes através de hackathones: maratonas de programação para concluir um projeto especÃfico. Muitos dos trabalhos que aparecem no fórum não requerem estar fisicamente presente, por isso chegam anúncios de qualquer lugar do planeta.
Quando eles saem da escola, os alunos têm um amplo leque de opções: âNão levam mais de dois meses para encontrar um emprego. Muitos gostam de cibersegurança, também de videogames e do campo dos gráficos, que agora está tendo muito desenvolvimento com a realidade virtualâ, exemplifica Madinier. âAlguns alunos vão para startups, enquanto outros preferem as grandes empresas. Alguns decidem fundar suas próprias empresas e outros vão para o GAFA [acrônimo de Google, Apple, Facebook e Amazon]â explica David Giron.
Existe um elemento em que a 42 se parece com qualquer outra escola de programação: a ausência de mulheres. Catherine Madinier é uma exceção, pois elas representam apenas 8% do corpo discente. âHá muuuuito trabalho a fazerâ, admite. Giron insiste que o problema vem de antes, uma vez que o percentual é semelhante ao das mulheres que se candidatam à s provas de ingresso: âà uma coisa cultural. A indústria dos videogames, com as personagens femininas que cria, tem muito a ver com issoâ. A mentalidade e o espÃrito divertido da escola fazem dela talvez algo mais atraente, mas em um setor, o do entretenimento eletrônico, em que as mulheres também foram sempre uma minoria muitas vezes esquecida. A 42 não tem quotas de qualquer espécie e se recusa a estabelecer um percentual mÃnimo de mulheres.
Agora em Silicon Valley
A 42 é o sonho de Xavier Niel, que aos 49 anos é a nona fortuna da França, com cerca de 10 bilhões de dólares, segundo a Forbes. Ele contribuiu com mais de 70 milhões na fundação da 42 para comprar o prédio da escola e mantê-la nos primeiros 10 anos de vida, à razão de cerca de 7 milhões de euros por ano. Niel é um pioneiro que criou uma das primeiras empresas francesas de Internet quanto tinha 19 anos. Alguns dos alunos da escola foram trabalhar em suas empresas, entre elas a Free, a segunda maior fornecedora de serviços de rede do paÃs, e a terceira operadora de telefonia celular. Na incubadora de startups Station F, investiu mais de 100 milhões de euros com o objetivo de continuar impulsionando a criação de empresas de tecnologia em Paris.
Em 2016 Niel decidiu levar o modelo de sua escola ao Silicon Valley, o epicentro da inovação tecnológica, com a abertura de uma sede em Fremont, na BaÃa de San Francisco, na qual também investiu 100 milhões para garantir sua viabilidade para a próxima década. Ele tem o apoio dos fundadores de empresas tão importantes no mundo da tecnologia como Snapchat, Periscope, Nest Labs, Slack ou a conhecida incubadora YCombinator. Lá, Niel levantou um campus de quase 20.000 metros quadrados com um edifÃcio de dormitórios para 300 alunos, oferecidos gratuitamente aos nascidos para o código que têm menos recursos.
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